Consciência Negra no Brasil (português)
Desde quando você participa e como e a sua participação?
Nasci na periferia de São Paulo, em 1964, mas minha família mudou-se quando eu era muito novo para o ABC Paulista, onde cresci. Lá, berço do movimento sindical e de lideranças como Lula, no final dos anos 1970, entrei em contato com a militância política, inclusive o movimento negro, que estava se reorganizando, na luta contra a Ditadura Militar.
Particularmente, como além de ser negro, sou gay, a luta contra o autoritarismo opressivo e repressivo da ditadura era quase uma questão de “sobrevivência” e acabei me aproximando de grupos socialistas que estavam tentando organizar estes setores, especificamente um grupo na época conhecido como “Convergência Socialista”, que cumpriu um importante papel na formação do Partido dos Trabalhadores (o PT, hoje no poder e que, na época, servia como canal para este tipo de luta, também).
Anos depois, após ser expulso do PT, deu origem ao partido onde milito no momento, o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado, onde ajudei a fundar tanto a Secretaria de Negros e Negras como a GLBT.
No decorrer das últimas décadas fui um dos fundadores do Núcleo de Consciência Negra da Universidade de São Paulo (em 1988) – que, tal qual as demais universidades públicas do país, tem um quantidade ridiculamente baixa de negros, algo em torno de 2%.Eu no momento, no “Movimento Quilombo Raça e Classe”, que tem como prioridade organizar negros e negras no interior dos movimentos sociais e da juventude (como sindicatos, entidades estudantis e do movimento popular).
Para nós também é muito importante saber um pouco da história e por que foi autodenominado “movimento negro”.
Para nós, militantes e ativistas anti-racista, o “movimento negro” brasileiro começou quando os primeiros negros e negras se agruparam para resistir à escravidão e ao racismo. Por isso, contamos, como parte de nossa história, a luta dos quilombolas, entre os séculos 16 e 19, da qual Palmares e Zumbi são nossos melhores exemplos; importantes revoltas urbanas, como a Revolta dos Malês, realizada no início dos anos 1800, em Salvador, com a presença de lideranças como Luiza Mahin; e luta de abolicionistas radicais, como Luis Gama, no final dos 1800; a Revolta da Chibata, liderada pelo marinheiro João Cândido, em 1910; a criação da imprensa negra e da Frente Negra Brasileira, nos anos 1920 e 30. Tudo isto é parte de nossa história e ajudou a colocar os negros e negras “em movimento” contra o racismo.
Do ponto de vista histórico, o “movimento negro” contemporâneo tem origem nas lutas iniciadas no final da década de 1970, quando da luta contra a ditadura militar e pela redemocratização da sociedade brasileira. Foi nesse processo que foram formados o principal agrupamento do movimento (particularmente o Movimento Negro Unificado, criado em 1978).
Naquela época, o que motivou a organização foram os escandalosos casos de racismo que eram acobertados pela ditadura e a compreensão de que a luta por uma sociedade democrática também significava a conquista de uma sociedade sem racismo, machismo ou homofobia. Tanto é assim que podemos dizer que os movimentos GLBT (gays, lésbicas, bissexuais, transexuais), feminista e negro se constituíram praticamente no mesmo processo.
Como foi esta denominação de movimento negro e não movimento de afro-brasileiros, ou preto “black” como se usa na Grã-Bretanha ou África do Sul, identificando-se o movimento não como étnico mas sim político.
Esta é uma daquelas discussões permanentes no interior do movimento negro brasileiro. E, certamente, você poderá encontrar diferentes explicações (a partir de distintas concepções sociais e políticas) para a adoção do termo “negro”. Essencialmente, do meu ponto de vista, como também de um setor significativo do movimento, a adoção do termo “negro” tem um conteúdo essencialmente político. Primeiro porque, num país que construiu e alimentou o “mito/farsa” da democracia racial (baseado nas teses de intelectuais como Gilberto Freyre, autor de “Casa Grande & Senzala”, publicado no início dos anos 1930) a afirmação de que somos “negros” (não “mulatinhos”, “escurinhos” ou qualquer bobagem parecida) é uma questão ao mesmo tempo, política e étnica.
Basta lembrar que no último censo nacional do país, realizado em 2000, somente 6.2% da população brasileira se declarou negra (um pouco mais de 30% se diz “parda”, que deriva da palavra portuguesa para “sujo”). Para se ter uma idéia do problema que enfrentamos, cabe lembrar que em Salvador, capital da Bahia e considerada a cidade mais negra do país, somente 13.3% da população se afirma como “negra”,o que demonstra a enorme falta de “identidade racial” neste país, um elemento que consideramos importantíssimo até mesmo para que possamos organizar o movimento.
A autodenominação mudou a forma dos negros serem tratados no Brasil?
Primeiro, é preciso lembrar que, no Brasil, “raça” é algo que se mescla com “tonalidade da pele” e não com herança étnica. Isto é um problema enorme para a criação de uma identidade política e racial. Sempre que dou palestras, menciono uma experiência que tive depois de ver o filme “Malcolm X”, do norte-americano Spike Lee. Quem viu o filme, deve-se lembrar da cena em que o jovem Malcolm, preso e completamente inconsciente da sua situação social e racial é aconselhado por outro detento a verificar no dicionário como a sociedade define “negros” e “brancos”. Depois de ver o filme, ao chegar em casa fiz o mesmo, checando o principal dicionário do país, o “Aurélio”. Não foi com surpresa que verifiquei que o termos “negro” é definido com adjetivos como os seguintes: “diz-se do indivíduo da raça negra (…); preto, sujo, encardido, preto (…), muito triste, lúgubre, (…) melancólico, funesto (…), maldito, sinistro (…), perverso, nefando (…) escravo”. Já “branco” tem como sinônimos termos como “dar cor da neve, do leite, do cal (…) diz-se do indivíduo da raça branca (…) sem mácula, inocente, puro, cândido, ingênuo”.
Essa enorme carga negativa jogada sobre a negritude é um dos elementos que faz com que negros e negras fujam de sua identidade racial. Para se ter uma idéia das consciências sociais disto, basta lembrar que em 1980, quando o Censo Nacional deixou em aberto a opção para raça/cor, os 50% que se identificaram como “não-brancos”, declararam nada menos do que 136 diferentes “cores” (que incluíam coisas absurdas como “alva-escura, quase negra, quase branca, queimada de sol, branca queimada, tostada” ou qualquer outra coisa que se nega a palavra “negra”, visa como um indicador de inferioridade social.
Neste sentido, cabe citar um exemplo das conseqüências disto que envolve uma figura muito conhecida na Europa, o craque Ronaldo Nazário. Em junho de 2005, entrevistado para comentar um caso de racismo no futebol brasileiro, o jogador (rico, famoso e adorado …) disse: “Acho que todos os negros sofrem [com o racismo]. Eu, que sou branco, sofro com tamanha ignorância”.
Existe o dia da Consciência Negra, gostaria de saber quando e porque foi instituído?
O “20 de novembro”, Dia Nacional da Consciência Negra” foi imposto como uma forma de se contrapor ao “13 de maio”, dia em que se comemora a abolição dos escravos, devido à assinatura da Lei Áurea, que transformou o Brasil no último país a por fim à escravidão, em 1888. Desde então, a data era usada pela elite para celebrar a “bondade” da elite brasileira (sintetizada na figura da Princesa Isabel) na libertação dos escravos. Ao levantarmos o “20 de novembro” com contraponto estávamos tentando resgatar a história de luta que marcou o fim da escravidão. Ou seja, não houve nenhum tipo de bondade ou concessão.
Pelo contrário. Muitos, como Zumbi (assassinado no dia 20 de novembro de 1695), deram suas vidas pela nossa liberdade. É essa consciência de luta que queremos resgatar com a data. A campanha para a transformação da data em feriado começou no final dos anos 1970 e, até hoje, apesar de várias cidades e capitais terem decretado a data, era ainda não é reconhecida nacionalmente e, até mesmo nas cidades em que o feriado foi aprovado, há resistência no seu reconhecimento por parte dos patrões, que se recusam a respeitá-la.
Qual é o objetivo do movimento Negro no Brasil?
Poderia dizer que o nosso objetivo comum é combater o racismo que está impregnado em todos os aspectos da vida nacional. Dois exemplos: a última pesquisa feita pela “Relação Anual de Informações Sociais (Rais)” revelou que enquanto o salário médio (mensal) de uma mulher negra é de R$ 760; a média salarial dos homens brancos chega a R$ 1.671,00; por outro lado, a chance de um jovem negro, de 15 a 24 anos ser assassinado no Brasil é três vezes maior do que a de um branco. Números como estes podem ser verificados em todos os setores sociais do país.
Por isso, parte significativa da luta é pela implementação de políticas públicas (cotas, ações afirmativas etc) que minimizem os efeitos do nosso secular racismo. A organização da qual faço parte, o Movimento Quilombo Raça e Classe, impulsionada por uma nova central sindical brasileira, a Coordenação Nacional de Lutas, a Conlutas (bem como a Secretaria de Negros e Negras do Partido Socialista dos Trabalhadores, PSTU, no qual milito) tem uma avaliação bastante própria da luta contra o racismo. Assim como Malcolm X dizia no final de sua vida, acreditamos que “não há capitalismo sem racismo”. Ou seja, apesar deste sistema não ter “inventado o racismo”, o capitalismo formou-se e desenvolveu-se aprofundando a opressão racial para poder lucrar com isto. Por isso, diferentemente da maioria das organizações, achamos que a luta anti-racista deve ser também um luta anti-sistema. É o que chamamos de luta de “raça e classe”. Uma batalha que deve ser travada em unidade com outros setores oprimidos (como GLBT, mulheres, juventude etc) em aliança com todos os demais explorados pelo sistema, os trabalhadores em geral, independente de sua raça. Já a maioria do movimento negro brasileiro, infelizmente, hoje acredita em saídas construídas única e exclusivamente no campo institucional, e por isso mesmo, encontra-se na sua grande maioria, aliada ao governo (por sua vez, composto em aliança com os mesmo setores, patronais e oligarcas, que sempre se beneficiaram com o racismo).
O movimento que acontece no Brasil está ligado com os movimentos internacionais?
Exatamente por acreditarmos nesta relação entre o racismo e o sistema capitalista, não vemos como lutar contra o racismo se não for numa perspectiva internacionalista. A perseguição aos “sem-papéis” e imigrantes em geral na Europa; a situação dos povos indígenas na América Latina ou de “chicanos” e negros nos EUA (apesar da eleição de Obama) demonstra que a questão racial está no centro de todas as tensões e crises existentes no mundo hoje.
Neste sentido, lutar contra o racismo é uma necessidade para todos aqueles e aquelas que, realmente, defendam um mundo mais justo e livre. Por isso mesmo é fundamental que construamos mecanismos internacionais, independentes dos nossos respectivos governos e dos setores patronais e burgueses que tentam cooptar os movimentos, pra construirmos uma unidade internacional, que nos permita trocar experiências, fazer campanhas conjuntas (só pra lembrar, de algumas possibilidades, podemos falar desde a luta pela defesa de Abu Jamal e outros negros perseguidos pelo racismo nos EUA até a luta pela vida e liberdade que está sendo travada pelos imigrantes na Europa, passando pela luta contra a violência racial nos países do chamado“terceiro mundo”.
Saudações anti-racistas.
Wilson Honório da Silva
Entrevistado por Cristiane Tasinato